segunda-feira, 4 de setembro de 2017

História trágico-marítima (CCXXXV)


Póvoa de Varzim
Naufrágio – Pormenores do sinistro

Na noite de ante-ontem para ontem deu à costa, na Póvoa de Varzim, a escuna portuguesa “Esperança”, pertencente à firma Lázaro de Oliveira & Cª., da praça de Olhão, no Algarve.
O navio foi acossado pelo temporal, quando pairava por alturas do Cabo da Roca e a custo se aguentou, durante uns dias, depois de haver perdido velas, mastros, etc., até que teve de dar à costa a despeito dos esforços feitos pelo respectivo capitão, Sebastião dos Reis, que é um verdadeiro lobo-do-mar, condecorado com a Torre e Espada e uma medalha Humanitária.
Salvou-se toda a tripulação, da qual faziam parte dois homens naturais do Porto, da freguesia de Massarelos e dois de Aveiro. O navio, que se considera perdido, está a ser destruído por ondas alterosas.

Desenho de chalupa, sem correspondência ao texto

Características da chalupa “Esperança”
Armador: Lázaro de Oliveira & Cª., Olhão
Nº Oficial: A-712 - Iic: H.E.C.A. - Porto de registo: Olhão
Construtor: N/d
Arqueação: Tab 73,53 tons - Tal 61,79 tons
Dimensões: N/d
Propulsão: À vela

O navio “Esperança” deve medir 18 a 20 pés de comprimento, de fundo achatado, com dois grandes mastros e pertence, como atrás referido, ao sr. Lázaro de Oliveira, farmacêutico em Olhão e importador e exportador naquela praça, onde está registado.
Por entre um vendaval desfeito, o mar agitadíssimo e a chuva a fustigar fortemente, o “Esperança” deu à costa pelas 9 horas da noite.
Apesar da violência do temporal que caía e da escuridão que nada permitia ver, numerosíssimas pessoas afluíram à praia, ali chamados pelos gritos dos tripulantes que pediam socorro.
Embora tivesse dado à costa, o navio continuava a ser batido por vagas alterosas. Estava ele completamente atravessado na areia, em frente ao prédio do sr. dr. Caetano Marques de Oliveira, para onde o mar o atirou, num arranco titânico de forte vaga.
Dentro, na câmara, estava ainda a tripulação, desorientada e faminta, por isso que desde o dia 15 estavam sem comer; tudo que levavam na proa tinha sido batido pelas ondas e arremessado ao mar.
O capitão do navio foi o primeiro a vir à proa, surpreendendo-se ao perceber que estava na Póvoa, terra que ele desconhecia. Ao acaso, sem esperança alguma, a tripulação estava salva.
O capitão do navio é um arrojado e forte marinheiro, que ostenta ao peito uma medalha do Instituto de Socorros a Náufragos e a Torre Espada. Não é preciso dizer mais nada para saber-se o quanto vale Sebastião dos Reis. Tem 38 anos de idade e 22 de vida passada no mar; nasceu em Olhão, é casado e tem 3 filhos.
O navio foi construído em 1919, conta três viagens de Olhão a Leixões e destinava-se agora a Inglaterra, a fazer um carregamento de bacalhau para Aveiro, consignado ao sr. Júlio Forte Homem, proprietário do navio “Argonauta”(?), dos bancos da Terra Nova.
O “Esperança”, agora destruído, andava desarvorado e sem panos, pedindo socorro desde terça-feira, por meio de bandeiras. Navios que passavam ao largo transmitiram a notícia pela T.S.F., mas foi baldado o trabalho, porque, em poucas horas, este mesmo navio galgava milhas seguidas, afastando-se ininterruptamente do local onde era procurado.
Perdidas as esperanças, os tripulantes refugiaram-se na câmara, amarrando-se por um lais de guia ao mestre Sebastião dos Reis, aguardando ali a morte. E assim andaram até que o navio foi bruscamente arremessado à praia da Póvoa de Varzim, entre o paredão que lhe ficava à direita e os cachopos à esquerda.
«Foi um milagre (declara o capitão); se o navio larga 3 graus para a esquerda ou para a direita ficava ali mesmo destruído e nós estávamos já todos mortos!»
Três dos tripulantes foram logo salvos; os outros estiveram na iminência de perecer ali, sendo a custo salvos pela abnegação de Sebastião dos Reis, auxiliado por algumas praças da Guarda-fiscal que prontamente acudiram.
O navio, que vinha em lastro, não estava no seguro, ao que se afirma.
É um bravo, e um herói o capitão do “Esperança”. A Grã-Cruz da Torre e Espada foi-lhe conferida porque, sendo prisioneiro dos alemães logo nos primeiros meses do conflito europeu, foi obrigado a combater contra os aliados, chegando a comandar um submarino, que mais tarde conseguiu entregar ao governo inglês.
A outra condecoração ganhou-a por ter salvo 55 náufragos – 27 noruegueses e 28 portugueses, em diversas conjunturas de perigo.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 22 de Dezembro de 1925)

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