sexta-feira, 2 de setembro de 2016

História trágico-marítima (CXCIX)


A explosão seguida de incêndio a bordo do vapor "Lykas",
com carga de combustíveis líquidos, no rio Douro

Encontrei esta notícia com origem nos Açores, como segue:
O vapor português “Lykas” encontra-se a descarregar 4.000 caixas de gasolina, 2.000 caixas e 300 barris de petróleo para a Vacuum Oil Co.
Ponta Delgada, 18 de Setembro de 1922.
Porque o nome do navio aguçou a minha curiosidade, fui à procura de outros detalhes, tendo constatado que o navio sofreu um pavoroso incêndio no rio Douro, decorrido num período inferior a um mês, após a referida escala na ilha de S. Miguel.

Vapor com 1 mastro construído em ferro “ Lykas “
1921 - 1924
Nº Oficial: -?- - Iic.: -?- - Porto de registo: Lisboa
Armador: José Garcia Rugeroni, Lda., c/o J. de S. Graça, Lisboa
Construtor: Blackwood & Gordon, Port Glasgow, Escócia, 06.1881
ex iate de recreio “Thisle”, armado em lugre com 3 mastros
Arqueação: Tab 394,07 tons - Tal 244,87 tons
Dimensões: Pp 56,92 mts - Boca 7,64 mts - Pontal 4,22 mts
Propulsão: B. & Gordon, 1886 - 1:Cp - 2:Ci - 115 Nhp - 8 m/h

Depois de utilizado com embarcação de recreio, durante 40 anos, este antigo lugre foi muito provavelmente transformado em Lisboa em vapor de carga, para ser utilizado no transporte de combustíveis líquidos.
Em função das datas dos acontecimentos relatados, o navio terá realizado mais uma viagem com esses produtos, antes de ser colocado a receber novo carregamento, desta feita com destino ao Porto, entrando no rio Douro no dia 13 de Outubro, consignado à firma Kendall, Pinto Basto & Cª., Lda., com carga de 800 caixas com gasolina e alguns barris com óleo e petróleo destinados à Shell.
Pelas 8 horas da manhã do dia seguinte, registou-se uma violenta explosão no carregamento de gasolina estivada no porão da proa. No combate ao incêndio acorreram bombeiros e todas as forças locais disponíveis, contudo não foi possível evitar severas avarias, pelo que precisou ser rebocado pelo “Mars” e pelo “Lusitânia” e levado para o largo, para o manter afastado das zonas habitadas.
Devido ao incêndio foi verificado acto contínuo a morte de um trabalhador portuário e ainda outros 18 feridos com muita gravidade, entre trabalhadores e tripulação, alguns dos quais muito embora hospitalizados, não conseguiram resistir às lesões provocadas pelas queimaduras aquando da explosão.


Tribunais do Comércio do Porto
Presidência do sr. Dr. Marques de Figueiredo, representando o Magistério Publico, o sr. Dr. Casimiro Curado.
Escrivães de serviço, os srs. R. da Silva, Sousa Oliveira e Freire de Liz.
Júri
Organizaram-no os srs. Francisco Ferreira, como relator; José Honório de Castro, João de Castro Carvalho, António Gonçalves Ribeiro, Joaquim José Pomar, João da Costa Gomes, Júlio Gonçalves de Carvalho e Américo de Sousa Soares Estevão, como suplente.
Causas discutidas
Acção – A. Taveira Laidley & Cª., Lda.; réu, Hugo de Almeida
A autora: dona de dois rebocadores, denominados “Douro” e “Leão”, e o réu é não só o capitão, mas também o legítimo representante do armador e proprietário do vapor “Lykas”. Ora, tendo este vapor entrado a barra do Douro, carregado de gasolina e óleos, em Outubro de 1923, quando tratava da descarga, rebentou-lhe a bordo um violento incêndio, com sucessivas explosões de gasolina, por tal forma que a tripulação o abandonou completamente.
Chamados os socorros, logo o “Douro” e o “Leão” avançaram para o local do sinistro, e, contra as ordens da autoridade marítima, num esforço que a A. capitula de heróico, aqueles rebocadores conseguiram atracar ao “Lykas”, saltando-lhe para dentro a tripulação e localizando o fogo nos porões da proa, evitando, assim, que ele se estendesse às carvoeiras, e, dali, aos porões da ré.
Quase dominado o incêndio, os dois rebocadores, com o auxílio dum terceiro, arrastaram o “Lykas” para o lado oposto do rio Douro, e ali definitivamente obtiveram a extensão do fogo. Conservou-se o “Douro” atracado ao “Lykas”, desde as 14 horas de 15 de Outubro, até ao dia 20, a esgotar-lhe a água dos porões, para que, depois, a descarga se pudesse realizar, trabalhando também no esgotamento o “Leão”, durante 16 horas. Este último rebocou depois vários barcos, com parte da carga, e um e outro pegaram no “Lykas”, e levaram-no da Afurada para a ponte de descarga da Companhia Shell, onde, durante duas horas, estiveram, no dia 23, a concluir o esgotamento da água dos porões do vapor.
Assim, além dos serviços de assistência, que foram importantíssimos, crê a A. ter direito também a serviços de reboque e esgotamento, os quais, atendendo-se à sua natureza especialíssima, ao zelo extraordinário dos dois rebocadores e respectiva tripulação, ao perigo a que se expuseram e ao valor do “Lykas”, e sua carga, se computam em 100 contos para o “Douro” e 30 para o “Leão”, quanto à assistência, e em 30.750$400 quanto aos demais serviços. Soma total 160.750$400 que a A. quer receber.
Na sua contestação, expõe o réu que o salário de salvação, ou assistência, respeita tanto à embarcação como ao seu carregamento de 7.240 caixas de gasolina e 30 barris de óleo. O óleo salvou-se, bem como 4.000 caixas de gasolina, tudo em valor muito superior ao do vapor, tendo este, como também o frete e a carga de responder pelo salário de salvação, na proporção legal. O réu não representa os carregadores, nem os consignatários da carga, nem qualquer Companhia de seguros por esta responsável.
Além disso, na extinção do incêndio não trabalharam só alguns tripulantes dos rebocadores “Douro” e “Leão”; cooperaram também os tripulantes do “Lykas”, o vapor “Lusitânia” e uma bomba do município do Porto, sendo certo que o fogo não podia comunicar-se aos porões do vapor, por isso que este os não tinha, mas apenas alojamentos. No reboque para a Afurada intervieram o “Luzitânia” e o “Mars”.
Deve ter-se em vista que o “Lykas” é uma embarcação pequena e muito antiga, e o seu valor, depois do desastre, ficou sendo apenas de 150 contos. Os rebocadores “Douro” e “Leão” são muito pequenos, valendo aquele cerca de 150 contos e este uma quantia inferior. Conclui, consignando que os serviços por eles prestados não devem ser arbitrados em mais de 40 contos.
Advogados, os srs. Dr. Alberto Temudo e Pinto de Mesquita; procuradores, os srs. A.A. de Oliveira e Aníbal Vaz. Procedente, por 30 contos.

Acção – A. Abel Martins Pinto; réu, Hugo de Almeida, capitão do vapor
O rebocador “Lusitânia” é propriedade do autor. Ora, em Outubro de 1923, achando-se o “Lykas” com fogo a bordo, e não obstante o perigo que a atracação oferecia, vistas as continuas explosões de gasolina, o “Lusitânia” conseguiu realizá-la e passou desde logo a atacar o incêndio, estabelecendo duas agulhetas e trabalhando sem interrupção durante algumas horas.
O “Lykas” foi rebocado para a margem esquerda, no sítio da Afurada, e este serviço não foi dos menos difíceis, em razão de não ser possível suspender as âncoras da proa do “Lykas”, pelo que teve de as levar de rastos com ele.
Em 20 de Outubro, já o “Lykas” fundeado no local onde o encontrara o “Lusitânia”, sobreveio um grande temporal que o obrigou a garrar, e, encostado a uma prancha, deitou-a abaixo, ficando a bater nas pedras e em situação deveras perigosa. Pediu o capitão socorro, e, imediatamente, o “Lusitânia” lho prestou, apesar da violência do temporal, conseguindo tirá-lo da posição critica em que se colocara e conduzi-lo para o lugar do Cavaco, onde ficou amarrado convenientemente.
Nestas circunstâncias, entende o A. haver lugar a salário de salvação e assistência, a qual, atendendo à natureza dos serviços prestados, no zelo empregado, tempo gasto, número de pessoas que intervieram activamente, perigos iminentes, valor do “Lykas” e dos objectos salvos, computa em 115 contos.
A defesa consigna que o salário de salvação e assistência, respeita tanto à carga como ao casco; a carga era composta de 7.240 caixas de gasolina e 30 barris de óleo, que se salvaram e tinham um valor superior ao do navio. Tem de responder por ele, conseguintemente, o vapor, o frete e a carga. O réu não representa os carregadores ou os destinatários da carga, nem qualquer Companhia de seguros. Além disso, as primeiras embarcações que apareceram a prestar socorro foram os rebocadores “Leão” e “Douro”, que levaram o “Lykas” mais para o largo e atacaram o incêndio, cooperando no serviço os bombeiros municipais.
Para ultimação dos trabalhos da extinção, foi o “Lykas” rebocado para a Afurada pelo “Lusitânia” e pelo “Mars”. O “Lykas” não esteve em risco de bater nas pedras e perder-se, e não foi ele que deitou abaixo a prancha, mas sim os batelões que batendo-lhe de encontro, a fizeram desabar. Os serviços prestados pelo “Lusitânia”, “Leão” e “Douro” foram de assistência e não de salvação. De resto o “Lykas” é uma embarcação velha, e o seu valor, depois do desastre, é de 150 contos.
O “Lusitânia” é igualmente um velho rebocador, cujo valor não excede 200 contos. Em conclusão: os serviços do “Lusitânia” não valem mais de 25 contos, que deverão ser pagos proporcionalmente pelo vapor e pela carga. Houve réplica e tréplica.
Foram advogados, os srs Drs. Figueira de Andrade e Pinto de Mesquita; procuradores, os srs. Adrião Santos e Aníbal Vaz. Procedente, de facto, pela quantia de 30 contos.

Apesar do casco ter ficado fragilizado pelo incêndio, o vapor foi reparado e mantido a operar no transporte de combustíveis até 1924, ano em que foi colocado à venda. Nesse mesmo ano mudou de proprietário, passando desde então a navegar com as seguintes características:

Vapor com 1 mastro construído em ferro “ Argus “
1924 - 1927
Nº Oficial: 435-E - Iic.: H.A.R.U. - Porto de registo: Lisboa
Armador: Sociedade de Navegação Argus, Lda., Lisboa
ex “Lykas”, José Garcia Rugeroni, Lda., Lisboa, 1921-1924
Arqueação: Tab 394,07 tons - Tal 244,87 tons
Dimensões: Pp 56,92 mts - Boca 7,64 mts - Pontal 4,22 mts
Propulsão: B. & Gordon, 1886 - 1:Cp - 2:Ci - 115 Nhp - 8 m/h
Vendido para demolir possivelmente em Lisboa, durante o 1º semestre de 1927

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