quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Porto de Leixões


O grande temporal de Dezembro de 1921

Muitas foram as ocasiões da passagem de grandes temporais pelo norte do país, e por força das circunstâncias com consequências nefastas devido às incidências verificadas na orla costeira e no mar. Como resultado da violência de ventos e das condições de mar alteroso, mesmo dentro do perímetro circunscrito à área portuária, existente na época, viriam a afectar de sobremaneira navios e outras embarcações, incapazes de permanecer nos ancoradouros, mesmo quando se julgavam protegidas pela insuspeita segurança, que lhes era assegurada pelo resguardo dos molhes.
O relato que se segue ocorreu em 1921, e mais uma vez tiveram lugar um corolário de sinistros de contabilizáveis prejuízos, que só não foram agravados por um elevado número de vítimas, porque na maior parte dos casos a isso obstou a indiscritível coragem e abnegação posta à prova pela tripulação do salva-vidas.

Matosinhos-Leça, 1 – Devido ao temporal, as traineiras “Hermínia” e “Matosinhos” (1), rebentaram as amarras hoje, à tarde, dentro do porto de Leixões; tentaram ainda sustentar-se contra as arremetidas das ondas, mas isso foi insuficiente porque ambas vieram desarvoradas escangalhar-se na praia de Matosinhos, próximo do paredão do sul, dentro do porto.
A tripulação, parte da qual estava a bordo, salvou-se, com grande custo, tendo ficado feridos vários homens, e entre eles o fogueiro da “Matosinhos", de nome Joaquim Fernandes de Oliveira, de 38 anos, morador à rua França Júnior, com contusões na região frontal, recebidas na ocasião em que se lançou ao mar para se salvar.
A traineira “Hermínia” pertence à Sociedade Boa Sorte, Lda., e estava segura na Companhia Equitativa de Portugal e Ultramar. A traineira “Matosinhos” pertence à Parceria de Pesca Matosinhos, Lda., e estava segura na Companhia de Seguros Pátria.

Anúncio da venda dos salvados
(In Jornal "Comércio do Porto", Domingo, 26.02.1922)

Ao sul do porto de Leixões estão em iminente perigo os vapores espanhóis “Valverde” (2) e “Atxeri Mendi”, (3) que pedem socorro desesperadamente, tendo partido para o molhe de Leixões o carro de socorro a náufragos dos Bombeiros Voluntários, bem como uma ambulância da Cruz Vermelha, estabelecendo um posto de socorros junto à capela do Senhor do Padrão.
A fragata “Serra do Pilar”, que se encontra ao norte, perto do porto de serviço, está também a pedir socorro. A traineira “Lordelo” foi abandonada pela tripulação, que a considera perdida apesar de ainda se encontrar com os ferros no fundo. Os tripulantes foram conduzidos para terra, a bordo do salva-vidas, que tem andado toda a tarde, desde o começo do temporal, a prestar socorro às tripulações e às próprias embarcações.

Por volta da 1 hora da tarde, começou a soprar, em Leixões, um vento forte de Sudoeste, o que, com a agitação do mar, motivou que os vapores espanhóis “Atxeri Mendi” e “Valverde” se chocassem, tendo recebido este uma pequena avaria.
Pelas 4 horas os vapores “Albano” (4), “Ganda” (5), “Faro” (6) e “Lihias Calvet” (7) também mudaram de fundeadouro porque estavam a garrar e corriam risco. E os iates “Elisabeth Rodwas” (8) e “Póvoa de Varzim” (9) fizeram sinais pedindo rebocadores para mudar de lugar.
Pelas 4 horas e meia três traineiras foram encalhar nas pedras do molhe sul soçobrando uma delas (10). O barco salva-vidas “Rio Leça” andou a prestar socorro às tripulações dos barcos de pesca.

O vapor francês “Valhala”, que se encontra na latitude 37º26’N e longitude 09º10’W, pediu, pela telegrafia sem fios socorros imediatos, pois encontra-se com os maquinismos seriamente avariados, correndo grave risco. Pela estação da T.S.F. foi o facto participado às autoridades marítimas.

A uma barca pertencente à Companhia de Adubos do Cabedelo, com sede e escritório na rua da Fábrica, no Porto, e que se encontrava ancorada no porto de Leixões, com um grande carregamento de sardinha para guano, rebentou as amarras vindo à praia, onde se desmantelou por completo, perdendo-se toda a carga, que não estava no seguro. Os destroços estão na praia, guardados pela guarda-fiscal.
A traineira “Amância” está também em risco de se desarvorar.
O vendaval tem sido tão violento, que por essas ruas se vê destroços de chaminés, tijolos, beirais de telhados e grande número de postes da Companhia dos Telefones derrubados. Por esse motivo não há comunicações telefónicas com o Porto.
Ao vapor espanhol “Atxeri Mendi” rebentando os ferros, garrou e passou sobre as pedras denominadas da «Espinheira», batendo contra o cais do sul, arrombando e adornando a bombordo. Não tinha ninguém a bordo.

Às 8 horas da manhã de hoje saíram para o alto mar cerca de 20 traineiras espanholas, com rumo a norte; supõe-se que se dirigiam ao porto de Vigo. Levavam a bordo cerca de 700 tripulantes, sendo de presumir que fossem apanhadas no mar pelo vendaval, porque não tiveram tempo de chegar ao seu destino, nem talvez recolher ao porto de Viana do Castelo.
Sendo assim, tudo leva a crer que esses 700 tripulantes se vissem em risco de naufragar; até agora não há notícia dessas 24 embarcações. Estas informações foram fornecidas pelo mestre da traineira espanhola “Santa Marta”, de nome Alegria.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 2 de Dezembro de 1921)

Matosinhos-Leça, 2 – Um lugre dinamarquês, do qual não foi possível apurar o nome e dois iates, sendo um o português “Póvoa de Varzim”, garraram, sendo convenientemente amarrados, com a ajuda dos rebocadores “Mars” e “Douro”, que se encontravam na bacia de Leixões. Estão ancoradas dentro do porto de serviço cerca de 30 traineiras.
O salva-vidas, a gasolina, tem prestado bons serviços na condução de pilotos para bordo, bem como as lanchas “Lavra” e “Leça”. Todas as embarcações de longo curso tem piloto a bordo por determinação do sr. Patrão-mor da Capitania.
Afundaram-se alguns pequenos barcos, e as avarias nas embarcações menores são em grande número, mas sem importância de maior.
O tapamento de madeira, pertencente aos Transportes Marítimos do Estado, do lado sul do recinto que existe em frente à estação do caminho-de-ferro da Póvoa, em Leça, foi derrubado pelo vendaval.
Hoje devia ter entrado em Leixões o paquete inglês “Araguaya” (11), da Mala Real Inglesa, com 27 passageiros do Brasil; em virtude do temporal seguiu para Vigo. Amanhã deve entrar o vapor português “Traz-os-Montes” (12), trazendo a bordo 800 passageiros de Santos, Rio de Janeiro e escalas.

Cartão postal do paquete "Araguaya"
Emitido pela Mala Real Inglesa

Na praia da Boa Nova apareceu hoje grande quantidade de seda, cortiça e chumbo, que foi arrecadada pela Guarda-fiscal, sendo ignorada a sua procedência. Há quem suponha que essa seda, cortiça e chumbo pertença a alguma daquelas 24 traineiras espanholas que ontem se fizeram ao mar com destino a Vigo e que foram surpreendidas pelo temporal. Foi tudo entregue pela Guarda-fiscal, na delegação aduaneira de Leixões.
Ainda não há notícia do destino que tiveram aquelas 24 traineiras espanholas que saíram do porto para norte. Na capitania de Leixões ainda não foram recebidas notícias a esse respeito.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 3 de Dezembro de 1921)

Foto do paquete "Traz-os-Montes"
Imagem da photoship.Uk

Notas relacionadas aos navios referidos no texto:
(1) A traineira “Matosinhos” estava matriculada em Leixões com o registo PL1168Y. Tinha 22,94 toneladas de arqueação bruta e 5,69 toneladas de arqueação líquida.
(2) O vapor espanhol “Valverde” pertencia a C. Latorre, estava registado em Bilbao e fôra construído em Sunderland, em 1892. Tinha 2.500 tons de arqueação bruta e 88,5 metros de comprimento.
(3) O vapor “Atxeri Mendi” pertencia à companhia espanhola Sota Y Aznar e também estava registado no porto de Bilbao. Havia sido construído em Stockton, no Reino Unido, em 1921, tinha 3.276 toneladas de arqueação bruta e 103,5 metros de comprimento.
(4) O vapor “Albano” pertencia à Sociedade Italiana de Serviços Marítimos e estava registado no porto de Génova. Construído em Sunderland, Escócia, em 1918, tinha 2.404 toneladas de arqueação bruta e media 87 metros de comprimento.
(5) O vapor “Ganda” pertencia à Sociedade Agrícola do Ganda e estava registado em Lisboa. Havia sido construído em Glasgow, em 1895, tinha 3.044 toneladas de arqueação bruta e media 104 metros de comprimento.
(6) O vapor “Faro” foi uma unidade dos Transportes Marítimos do Estado e estava registado em Lisboa. Construído na Escócia em 1905, tinha 4.044 toneladas de arqueação bruta e media 110 metros de comprimento.
(7) O vapor “Lilias Calvert” era de nacionalidade inglesa, pertencia à firma Alfred Carvert Shipping e estava registado no porto de Goole. Construção alemã no estaleiro de Flensburgo, em 1888, tinha 804 toneladas de arqueação bruta e 58 metros de comprimento.
(8) Não existe informação sobre o iate “Elisabeth Rodwas”, eventualmente por ser navio de pequenas dimensões.
(9) O iate “Póvoa de Varzim” foi construído em Vila do Conde, em 1921, porto onde ficou matriculado. Tinha 104 toneladas de arqueação bruta e acabaria por naufragar em situação idêntica de mau tempo em Leixões, no decorrer do mês de Janeiro de 1922.
(10) A traineira não identificada, que se perde por naufrágio nas pedras do enrocamento do molhe sul era espanhola e chamava-se “Anido”. Tinha 35 toneladas de arqueação bruta.
(11) O paquete “Araguaya” da Mala Real Inglesa, que não conseguiu dar entrada no porto, devido ao temporal, foi construído em Belfast, porto onde estava registado. Era um dos maiores navios que faziam escala em Leixões, estando a operar na carreira numa carreira de ligação entre a Inglaterra e a América do Sul, com escalas nos portos do norte de Espanha e Portugal. Tinha 10.530 toneladas de arqueação bruta, com 157 metros de comprimento.
(12) O paquete português “Traz-os-Montes”, dos Transportes Marítimos do Estado, registado em Lisboa, encontrava-se a navegar de regresso dos portos do Brasil. De construção alemã, em Geestmunde, tinha 8.965 toneladas de arqueação bruta, com 141 metros de comprimento.

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