domingo, 31 de maio de 2015

Pesca do bacalhau


Conversas improváveis! (II)

O “Santa Regina” chegou dos mares da Gronelândia
No cais de Massarelos, tem estado, à descarga, o “Santa Regina”, lugre da frota bacalhoeira, pertencente à praça de Aveiro. Comanda-o o capitão António dos Santos, oficial sabedor, enérgico, decidido, arcaboiço de lutador dos mares, homem experimentado nas lides da pesca do bacalhau, que aos bancos conta já uma boa dezena de viagens.
É na amurada de bombordo do seu navio, que o capitão Santos descreve, com a maior simplicidade, em conversa, a sua viagem deste ano à pesca do fiel amigo.
- O “Santa Regina” entrou a barra do Douro, carregado, até à cinta, em princípio de Outubro, tendo saído em Abril para os bancos da Terra Nova – diz o capitão Santos. Mas, como o peixe ali falhasse, levantei ferro para a Gronelândia, onde me demorei até completar o carregamento.
- E a pesca na Gronelândia é abundante como na Terra Nova?
- A pesca, no geral, abunda, mas também falha, quando desaparece o sandilho, peixe parecido com o nosso lingueirão, de que o bacalhau se alimenta e que nós aproveitamos para o isco dos anzóis. A pesca é pelo mesmo processo, nos dóris, à linha e à zagaia, sendo trazido o peixe para bordo, onde é escalado e salgado.
- E tem horas certas de trabalho, os homens?
- Têm, mas, quando é preciso aproveitar a maré, aproveita-se. É para benefício de todos…
- E demais, como é sempre dia…
- Assim é, mas, em meados de Agosto, já se acende o farol do tope e luz na câmara. E, depois, as noites vão aumentando, gradualmente. Uma faina de mil diabos, esta vida! Ninguém imagina os trabalhos que a gente passa, quando comem, regaladamente, uma posta de bacalhau assado ou um prato de bacalhau à Gomes de Sá…
- As montanhas de gelo não são lá frequentes, capitão?
- São, sim, senhor. Os icebergues.
- E são grandes?
- Às vezes são maiores e bem maiores do que um grande edifício. Outros são rasos à água, e formam o que nós chamamos “campos de gelo”. A parte submergida é, também, grande e funda, pois chegam a encalhar. E o mar, ali, tem umas quarenta braças de profundidade…
- São perigosos, decerto, os icebergues?
- Vê acolá aquela racha? - e aponta uma enorme fenda aberta no cobre do casco. Aquilo foi, só, de roçar por um campo de gelo. Uma manobra demorada demais para o evitar.
- E como procurar evitar esse perigo?
- É conforme. Se o navio tem motor levanta-se ferro e cava-se. Se não tem como este, então suspende-se e deixa-se ir à rola, ao sabor da corrente, até que, a reboque dos dóris, se vai fugindo obliquamente e se dá passagem ao bicho. Outras vezes, é como Deus quer. Olhe, em 11 de Agosto, estivemos nós na iminência duma grande catástrofe. Estava uma tarde de temporal desfeito. A neblina a custo nos deixava ver as montanhas de gelo que, ao largo, se deslocavam. O vento arrancava-lhes blocos enormes de gelo, verdadeiras avalanches! Se, por fatalidade, o vento virasse a nordeste, dos doze navios fundeados nem um só escapava! Seria a maior tragédia a registar, nesta vida malfadada!...
- E nessas circunstâncias em último recurso…
- Entregamo-nos à Providência - concluiu o capitão - que desta vez, como de tantas outras, foi a nossa boa protectora.
- É certo os esquimós visitarem os vossos navios?
- Eu não os vi, pois pesquei a 64 graus. Mas, aos que fundeiam mais para o Norte, a 68 graus, têm aparecido, a trocar peles de animais por aguardente. O meu colega do “Viajante 2º”, que pescou pelas alturas da ilha de Disko, teve este ano, a bordo, a visita de seis mulheres esquimós.
E, num olhar malicioso, num desabafo de inveja, o capitão rematou:
- Que rico dia de pesca! Uma marésada assim, não a apanha cá o velho…
- É toda de Ílhavo, a tripulação do “Santa Regina”?
- Não. Trago também homens da Figueira, da Afurada e da Póvoa.
- Todos pescadores?
- Todos! Mas, acabada a faina, em viagem, os ílhavos passam a ser os homens da manobra. Quando o temporal se desencadeia, nas horas de luta com as tempestades - e tantas vezes com a morte! - é com eles que contamos para safar a rascada. Grandes marinheiros, os homens da minha terra!
Verdadeiros heróis! – exclamou, entusiasmado e orgulhoso, o capitão. E, depois com desalento, concluiu:
- Heroísmo ainda tão desconhecido e mal avaliado, quando o Mar lhes não abre a sepultura, espera-os uma velhice cheia de necessidades e misérias…
- E nos dias bonançosos e noites serenas, que fazem os seus marinheiros?
O capitão não responde. Fica pensativo, olhos fitos para além da barra. Mas, compreendendo-lhe o seu pensar, ouvimo-lo dizer:
- Nas noites luarentas almas resignadas dedilham a guitarra, a recordar a sua terrinha tão longe adormecida, tantas milhas distante dos seus olhos saudosos… Nas horas vagas de brisa fagueira, ou calmaria podre, dão largas ao seu instinto artístico. E à revessa do castelo da proa, pegam num madeiro, num canivete, modelam um casco, aparelham-no num requinte de gosto e apuro, sem a mínima falta dum pormenor e das suas mãos, cortadas da linha da zagaia, gretadas da salga e dos ventos glaciais, saem essas embarcações miniaturas, verdadeiras maravilhas de arte, que são o pasmo e encanto de quem visita a sala marítima do Museu de Ílhavo.
Estava terminada a visita. Que os trabalhos da descarga exigiam a presença do capitão. E, já na prancha do cais ainda lhe ouvimos dizer, com aquela franqueza rude, característica da gente do mar:
- Apareça mais vezes. Os amigos são sempre bem-vindos.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 7 de Novembro de 1934)

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