quinta-feira, 23 de abril de 2015

História trágico-marítima (CXLVII)


O afundamento do arrastão "Cabo de S. Vicente"

A 23 milhas da Ericeira, um avião desconhecido afundou
o vapor de pesca português “Cabo de S. Vicente”
Ante-ontem, de manhã, saiu de Lisboa, para a faina da pesca, o vapor “Cabo de S. Vicente”, que deslocava cerca de cem toneladas e pertencia à firma Sociedade Comercial Marítima Lda. Comandava-o o capitão sr José Atebrêdo de Morais e levava 18 homens de tripulação. Pouco depois das 18 horas, o “Cabo de S. Vicente” pairava a 23 milhas da Ericeira. Surgiu, então, um avião de nacionalidade desconhecida, que, após ter sobrevoado o navio durante algum tempo, começou por fazer contra ele uma rajada de metralhadora.
Este súbito ataque foi tomado pelos tripulantes do pesqueiro como um aviso para abandonar o navio e meteram-se, imediatamente, dentro de um escaler, dirigindo-se ao vapor “Açor”, da Companhia Portuguesa de Pesca, comandado pelo capitão sr. Samuel Marques Damas, que estava a pescar no local. Recolhidos a bordo, foram transportados para Lisboa, onde desembarcaram ontem, de manhã.
Do avião foram lançadas, ao mesmo tempo que isto sucedia, duas potentes bombas, de forma oblonga, que rebentaram a bombordo e a estibordo do “Cabo de S. Vicente”, provocando o seu afundamento tão rápido que os tripulantes não tiveram tempo de voltar para recolher os seus haveres. Os náufragos do pesqueiro desembarcaram, ontem, de manhã, no cais do Frigorífico de Santos, onde o “Açor” atracou.

Foto do arrastão "Cabo de S. Vicente", com legenda,
conforme está publicado no jornal "Comércio do Porto"

Este atentado, tão insólito como inexplicável, que nada justifica, levou à perda de mais uma unidade, embora de pequena tonelagem, da nossa Marinha de Pesca. Eleva-se, assim, a seis, o número de navios que o País já perdeu – quatro afundados por submarinos e dois por aviões – durante o actual conflito.
O novo atentado, revoltante manifestação de força, violência injustificável, não pode passar sem o nosso veemente protesto, tanto mais que foi praticado contra gente humilde, que não se podia defender e, confiadamente trabalhava pelo abastecimento da população.
A nossa posição de neutralidade, que tem sido cumprida escrupulosamente, tem de ser reconhecida e respeitada por todos os beligerantes, para que não tenhamos a lamentar qualquer outra agressão desta natureza.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 12 de Março de 1942)

Características do navio de pesca “Cabo S. Vicente”
1924-1942
Nº Oficial: 431-E - Iic: C.S.F.S. - Porto de registo: Lisboa
Armador: Sociedade Comercial Marítima, Lda., Lisboa
Construtor: Cochrane & Sons Ltd., Selby (Glasgow), 1910
ex “H.A.L. Russel”, P. & Haldanes Steam, Hull, 1910-1913
ex “Darracq”, Equitable Steam Fishing, Grimsby, 1913-1923
ex “Cabo Carvoeiro”, -?-, 1923-1924
Arqueação: Tab 269,48 tons - Tal 103,31 tons
Dimensões: Pp 39,86 mts - Boca 6,78 mts - Pontal 3,58 mts
Propulsão: Amos & Smith 1:Te - 3:Ci - 80 Rhp - 10 m/h
Equipagem: 18 tripulantes
Capitão embarcado: José Atebrêdo de Morais

Foto do navio de pesca "Alvôr", construído no mesmo estaleiro
em Selby, em data posterior, mas muito idêntico ao "C.S.Vicente"
Imagem retirada do excelente blog "Restos de Colecção"

O capitão do navio de pesca “Cabo de S. Vicente”, criminosamente afundado na passada terça-feira, a 23 milhas a noroeste do Cabo da Roca, esteve ontem novamente na Capitania do porto de Lisboa, para relatar o sucedido.
Os tripulantes do navio residentes na Ericeira e em Cascais chegaram ante-ontem mesmo às suas terras. Devem vir a Lisboa hoje, a fim de se avistarem com os armadores do navio sinistrado para saberem da sua situação.
Os prejuízos sofridos pela Sociedade Comercial Marítima, Limitada, foram importantes. O navio havia custado cerca de 1.500 contos, mas presentemente valia muito mais, dado o aumento do preço dos materiais. O “Cabo de S. Vicente” tinha, na altura do afundamento, seis redes de pesca, que valiam hoje cerca de 100 contos, com a agravante de não haver presentemente redes no mercado. Com o afundamento do vapor, são seis os navios portugueses metidos no fundo.
O primeiro foi o “Alpha”, da Sociedade Luso-Marroquina, em 22 de Julho de 1940; depois foi o “Exportador I”, da firma Novo Horizonte, em 1 de Junho do ano findo; o “Ganda” da Companhia Colonial de Navegação, em 20 de Junho; o “Corte Real”, da Companhia Carregadores Açoreanos, em 12 de Outubro, e o “Cassequel”, em 14 de Dezembro, pertencente também à Companhia Colonial de Navegação.
O ataque de agora ao “Cabo de S. Vicente” foi feito em condições totalmente diferentes dos que têm sido feitos aos outros navios portugueses. De todos os vapores nacionais afundados, só o “Alpha” foi atacado por um avião que varreu o navio a tiro de metralhadora. O “Cabo de S. Vicente” foi atacado com bombas magnéticas e quase simultaneamente metralhado.
Duas bombas caíram no mar, uma de cada lado do navio e a pequena distância. Enquanto as bombas eram atraídas pelo pesqueiro e rebentavam contra ele, o avião varria o convés, com o firme propósito, não só de destruir o navio, como de matar os seus tripulantes.
Por isso o capitão ainda ontem confessou às autoridades: «Não sei como conseguimos escapar. As balas caíam aos nossos pés!».
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 13 de Março de 1942)

O afundamento do “Cabo de S. Vicente”
Uma nota da Embaixada Britânica
Dos serviços de imprensa da Embaixada Britânica foi recebido, com pedido de publicação, a seguinte nota:
«Com referência ao afundamento do navio português “Cabo de S. Vicente”, na tarde do passado dia 10, as autoridades navais britânicas de Gibraltar informam que nenhum avião inglês ou aliado se encontravam naquelas paragens nessa ocasião».
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 14 de Março de 1942)

P.S.- Com a publicação do ataque aéreo, que ocasionou o afundamento do navio de pesca “Cabo de S. Vicente”, fica quase completa a transcrição e narração no blog dos seis navios abatidos, de acordo com a informação referida no texto.

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