quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Uma história, que a história não contou - A odisseia da barca Craigmullen


Navio desaparecido à deriva por dez meses
= 2ª Parte =

Entre os limites do horizonte, a superfície do mar parecia estar coberta por uma fina camada de uma substancia oleosa, como vidraça, quebrando-se ao ser atingida. Animais minúsculos de difícil descrição abundavam espalhados e a vegetação marinha já desenvolta, ocupava alguns centímetros acima da linha de água.
Apenas por uma única vez em todo esse período, foi notado o fumo negro de um vapor, visto muito ao longe, pelos confins de leste. Enquanto era apreciada aquela coluna de fumo, tornou-se penoso ver os poucos tripulantes, valendo-se duma pequena fatia de energia, subir aos mastros, gritando e acenando vigorosamente por ajuda. Até que o fumo do vapor se dissipou. Os homens desceram dos mastros e agacharam-se na coberta, lacrimejando impotentes, berrando impropérios contra tudo e contra todos, numa angústia febril. Como alguns, poucos, conseguiram manter-se com força anímica e minimamente saudáveis, é sem dúvida um enorme mistério.
Mas tudo tem um fim, até aquela impensável calmaria. O aviso que o tempo ia mudar, ocorreu precisamente na tarde do centésimo dia e não tardou a manifestar-se. A primeira indicação do que ia acontecer a seguir, chegou através da oscilação do barómetro, com a queda abrupta do mercúrio. E o céu logo começou a escurecer. Um conjunto de vagas espaçadas vindas de leste, a aumentar de volume, começaram por provocar no navio um adorno sincopado, borrifando alguma água para o convés. Nessa ocasião o sol desaparecera, dando lugar à passagem de nuvens ameaçadoras, parecendo estarem prestes a colar-se nos mastaréus.
Percebia-se que se aproximava um tufão. Os marinheiros instintivamente olhavam para o céu em contemplação enquanto largavam o pano, abrindo quase todas as velas e ainda que não pudessem fazer muito mais, sempre havia a motivação do regresso ao trabalho. Mas que lhes importava? Se os mastros fossem atirados pela borda fora, pela força do vento, já pouca diferença faria. Se o navio se voltasse seria uma dádiva divina, para por fim ao sofrimento e quanto mais depressa melhor.
A tripulação estava então reduzida a 14 homens; seres humanos abjetos e esfomeados, cujas roupas agora largas cobriam literalmente formas esqueléticas. Será porventura desnecessário dizer, que após a passagem do tufão, o “Craigmullen” assemelhava-se a um destroço irreconhecível. O casario, os botes, enfim tudo quanto podia ser retirado do convés, foi levado pelo mar. Os mastros e as vergas estavam partidos, projetados borda fora, felizmente sem ferir ninguém.
Apenas numa única circunstância a força dos elementos foi-nos favorável. O mar que havia arrombado a tampa dos tanques de água, situados à popa sobre os beliches dos aprendizes, que o mar não arrancou, encheram-se de água doce proveniente das fortes bátegas de chuva, caídas durante a tempestade.
Um pouco mais tarde aconteceu o inevitável - o escorbuto -, surgiu impiedoso, atacando de forma lenta com uma febre virótica, pelo que os homens começaram a morrer mais rapidamente. Apesar de terem sido utilizados todos os medicamentos disponíveis a bordo, foram em vão todos os esforços efetuados para combater essa doença mortal. E acabados os medicamentos, restava-lhes permanecer sentados ou acamados à espera do fatídico fim.
A cada amanhecer continuava o arrastar dos corpos pela coberta, na esperança de encontrar na linha do horizonte uma hipótese de auxílio. Seguia-se a visita aos doentes, dando àqueles que ainda podiam comer um punhado de arroz cru; quem podia beber dispunha de uma caneca de água da chuva. Os mortos por sua vez eram carregados até às amuras, para depois duma breve cerimónia, serem lançados no abismo profundo. E assim continuou até ficarem somente três homens, desgraçadamente esfomeados, duma equipagem embarcada reunindo 25 tripulantes.
Já não havia noção do tempo decorrido. Só raramente conversávamos, porque os pensamentos estavam ligados aos companheiros perdidos. A solidão às vezes provocava-me delírios e sonhos estranhos, de encontros com as pessoas de casa e com os amigos. Visões que se tornavam amiudadamente frequentes, mais incoerentes, até ao definitivo mergulho no esquecimento.
A primeira noção do regresso à vida e recuperar a memória foi ouvir o som de vozes. À frente dos meus olhos, a visão turva e espantada reparava em vultos que pareciam esvoaçar. “Viemos salvá-los!” disse uma voz. “Aquele está morto e não há mais ninguém a bordo”, dizia outro. Tentei mover-me, encontrar palavras para explicar o que tínhamos vivido. Sei que depois fiquei inconsciente e quando voltei a despertar já me encontrava deitado numa cama e num hospital.
Vagueamos através do Pacifico, num navio desmastreado e abandonado, até chegar a umas 300 milhas a noroeste de Callao, depois de termos sido avistados e rebocados por um vapor costeiro até ao porto. O segundo oficial, o marinheiro mestre das velas e eu fomos encontrados inconscientes, ainda que com um sopro de vida, um esgar de esperança. Todavia o marinheiro acabou por morrer, após ter comido a sua primeira refeição.
Como recompensa pelos meus serviços – o que significa ter-me mantido vivo e ter poupado aos armadores e seguradoras alguns milhares de libras –, fui agraciado com um sextante. Havíamos saído de Singapura em Maio de 1895; fomos encontrados e salvos em Março de 1896.

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