sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Efeméride


70 anos sobre o ataque e o afundamento do vapor "Baependy"
2ª Parte

Postal ilustrado com o vapor "Baependy"
Edição do Lloyd Brasileiro - minha colecção

O navio está completamente submerso. Imagino que não deve ter levado mais de três a quatro minutos a afundar-se, tornando impossível qualquer providência de salvamento, ou a descida de qualquer das baleeiras. O mar, violentíssimo, encapelado, está coberto de destroços, e, não sei como, ainda caem paus de todos os lados, como estilhaços.
Ouço gritos terríveis, angustiosos, de socorro, e vejo homens, mulheres e crianças afogando-se ao meu redor. Nado um pouco e agarro-me a uns paus que flutuam, e que as fortes ondas mos arrancam logo das mãos; imediatamente seguro-me noutros, mas também não consigo sustê-los, e fico nesse jogo, pulando de uma tabua para outra, durante algum tempo. Noto que há sobre a água duas luzes avermelhadas, como archotes, a iluminar aquela cena macabra: são boias de iluminação, que se acendem automaticamente, ao contacto com a água.
O mar limita-me a visão, e só quando me elevo numa onda melhora o meu horizonte. Em dado momento, avisto com surpresa um projetor lançando seu feixe luminoso sobre o local do sinistro: firmo o olhar e diviso, iluminado pelas luzes que dançam na água, o perfil do submarino assassino, bem próximo de nós, contemplando os resultados da sua bárbara missão! Em seguida, perco-o de vista…
Estou agora junto de uma grande tábua branca, com aberturas que me parecem janelas; consigo com facilidade deitar-me nela, de bruços, sentindo-me melhor acomodado. Pelo menos descanso um pouco. E agarro-me com todas as forças, para que as ondas não me arranquem dali. Perto de mim, alguém grita em desespero, já quase a perder o fôlego.
- Não posso mais, vou desistir…
Animo o companheiro, chamando-o para junto de mim, e isso dá-me mais animo! Ele aproxima-se, e com algum esforço agarra-se à minha tábua: vem ofegante, exausto. Trocamos algumas palavras. É um tripulante do Baependy. As ondas violentas e o vento forte começam agora a espalhar náufragos e destroços; os gritos dispersos de socorro chegam de cada vez mais longe. Somos também impelidos para longe do local do sinistro, arrastados naquela tábua, num rumo desconhecido.
Conjugando os nossos esforços, examinamos o mar em todas as direções. Nada! Provavelmente nenhuma baleeira pode ser lançada ao mar. A nossa salvação é provisória, sem dúvida… E ficamos vogando ao sabor das ondas por um tempo difícil de estimar: talvez meia hora, uma hora… Ouvem-se agora menos gritos de socorro: a maioria sucumbiu, desesperada!
Mas repentinamente divisamos uma silhueta que não é de um destroço, passando defronte das boias de iluminação, já bem longe. Parece-nos uma baleeira… Dentro, um vulto, de pé… não resta dúvida, é uma baleeira! Mas está muito distante. Para alcançá-la, teríamos que nadar contra o vento e as ondas, e, cansados como estávamos, isso não pareceu empresa fácil. Começamos então a gritar, com todas as forças dos nossos pulmões. Grito, grito! Lembro-me de gritar o meu nome, e faço-o diversas vezes. Lembrança talvez salvadora: ouvimos, pouco depois, uma resposta que nos pareceu «espera»… Graças a Deus, tinham-nos ouvido, e remam na nossa direcção! Foi o primeiro alento, a primeira sensação de poder sair dali com vida daquela pavorosa catástrofe.
A baleeira aproxima-se. Abandonando a benfazeja tábua, damos umas braçadas, lançam-nos uma boia presa a uma corda, e somos içados para bordo, onde encontro dois tenentes, dois sargentos e três soldados, da minha unidade. Abraçamo-nos, comovidos, mas poucas palavras trocamos. Pensamos na sorte dos nossos camaradas, e não nos conformamos com a ideia de que somos os únicos sobreviventes.
É talvez a única baleeira que escapou ao desastre, arrancada dos turcos pela violência da explosão. Recolhidos mais alguns náufragos, somos ao todo vinte e oito. Entre eles, há uma moça que, mal explodiu o torpedo se lançou resolutamente ao mar, nadando, agarrada a um pequeno destroço, durante mais de uma hora!
Mas em que direcção ficará a costa? Não podemos orientar-nos com segurança, pois mal se veem as estrelas, e a escuridão impede-nos de consultar a única bússola, que corria de mão em mão, inutilmente. Mas entre os náufragos está, felizmente, o piloto do Baependy. Recobrando as forças, ele resolve com simplicidade o problema da navegação, mandando «remar na direcção do vento, pois o mesmo soprava para terra».
Somente na baleeira noto que estou ferido. O sangue jorra abundantemente do meu rosto, e, levando a mão à face direita, percebo que sofri uma fratura. Mas não sinto nenhuma dor. A pequena embarcação joga como uma casca de noz naquele mar agitado, e de vez em quando uma onda mais forte invade-a; um grande rombo na proa aumenta a nossa inquietação; é preciso baldear continuamente, tal a quantidade de água que entra.
O vento é cortante, sentimos um frio tremendo, uma sede desoladora, e o enjoo apodera-se da maioria. Pouco depois avistamos, não muito longe, um navio iluminado. Ficamos hesitantes: valerá a pena remar na sua direcção? Alcançá-lo-emos? Desistimos da ideia, o que foi providencial, pois cerca de uma hora depois, ouvimos o eco de uma tremenda explosão, que nos pareceu um trovão longínquo: o navio que passara por nós – o Araraquara, soubemos depois – também fora torpedeado!
Navegamos assim, impelidos pelo vento e pelos remos, durante toda a noite – que nos pareceu interminável. Os rapazes, incansáveis, revezavam-se nos remos e os outros no balde de água. Ao clarear o dia, ainda na penumbra, temos uma explosão de contentamento: a uns dois quilómetros de nós, vemos uma faixa branca de areia de uma praia! Mais umas remadas, a manobra para vencer a forte rebentação, e eis-nos em terra firme. Nossos corações pulam de alegria!
A praia, desabitada, é formada por vastas dunas de areia, onde os pés se enterram, agravando o nosso cansaço. Caminhamos algum tempo, seguindo uma pequena trilha, até avistarmos uma cabana onde apenas encontramos água. Felizmente, indicam-nos uma picada que vai ter a uma povoação. Andamos até ao meio-dia, ou antes, arrastamo-nos, pois há diversas pessoas feridas, e outras esgotadas. Por sorte encontramos muito coco da Baía, cuja água saborosa bebemos sofregamente.
Ao chegarmos à povoação, todas as portas e janelas se batem, violentamente! «Que teria havido?». Consultamo-nos, surpresos… Estamos tão embrutecidos, que nos custa a compreender: a nossa nudez quase total ofendeu o pudor da gente da terra! Um parlamentar, que enviamos em trajes mais decentes, resolve a situação, e recebemos algumas roupas usadas, que nos permitiram improvisar tangas.
Depois de alimentados, seguimos de canoa para Estância, no estado de Sergipe, termo das nossas provações. Ali soubemos, mais tarde, terem chegado à praia, numa pequena balsa de madeira, mais oito náufragos do Baependy. Trinta e seis sobreviventes – eis o que restava! Quase todos os nossos camaradas tinham sido tragados pelas ondas. E quando um médico, naufrago também, nos relatou o episódio da morte do mais jovem dos nossos companheiros de armas, não pudemos conter as lagrimas. Ao atirar-se ao mar, sem salva-vidas, certo do fim que o aguardava, o tenente Assunção lançara em voz vibrante este grito derradeiro de patriotismo:
«Viva o Brasil!».

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